“O modernismo é menos um estilo do que um método que se presta a interpretar o presente e sugerir o futuro em que a individualidade é preservada e celebrada”. Este é o pensamento que guiou toda a obra do arquiteto e designer italiano Gaetano Pesce, que nos deixou no início de abril.
Radical em seu experimentalismo, promovia o design como meio e forma de comunicação com a sociedade. Sem concessões, fez em seis décadas de trabalho de tudo um pouco e deixou um dos mais importantes legados na história na arquitetura e do design. A DW! celebra a memória de Pesce com um pouco de sua história e seus ícones.
O jovem visionário
Nascido em 1939 em La Spezia, cidade portuária italiana da Ligúria, foi em Veneza que cursou arquitetura de 1958 a 1963 – na IUAV e no Istituto di Disegno Industriale. À época, o lugar unia a educação oferecida por professores modernistas e a tradição da artesania do vidro, em Murano. Dali, olhou o Modernismo com criticidade e a manualidade como algo intrínseco à criação.
Em Padova, cidade próxima, participou do Gruppo N – Ennea que, na vanguarda dos anos 1960, estava atrelado aos conceitos defendidos pela Bauhaus: a Gestaltpsychologie ou psicologia da forma, pela qual percebiam o mundo e a ele respondiam. Composto por nove jovens, ficou conhecido pela arte cinética e seriada, reunindo designers experimentais e que pesquisavam de forma coletiva.
O grupo se caracterizava por uma provocação radical, que colocava em xeque o artista e a obra de arte feitos para um consumo elitista e mercadológico. Pesce participou da elaboração de uma das performances do coletivo, Mostra del Pane, na qual um padeiro apresentava o pão feito e assado, como uma obra de arte, por apenas um dia.
A essa altura, a provocação que o acompanharia por toda a carreira já estava nele instalada, era sua idiossincrasia. Assim, a dimensão do significado fez, desde o início da vida profissional, parte da criação de Pesce. Ele via o design para além do tangível. “
Ao longo de seis décadas, Gaetano revolucionou os mundos da arte, design, arquitetura e os espaços limiares entre essas categorias. Sua originalidade e coragem são igualados por nenhum”, diz o texto que anunciou sua morte, no Instagram do mestre.
L’incoerenza
Gaetano Pesce foi também professor, lecionando por 28 anos no Institut d’Architecture et d’Etudes Urbaines em Estrasburgo, na França. Esporadicamente, ministrava aulas em outras instituições pelo mundo, inclusive no Brasil. Foi arquiteto, designer e urbanista, mas sobretudo um pensador da realidade.
Em entrevista à Abitare, para Elisabetta Colombo, afirmou: “Por que gosto de materiais macios? Considero-os uma expressão deste tempo líquido, em que os valores mudam constante e rapidamente”.
Compreendia que a arquitetura e o design deviam ser responsivos à sociedade e as suas diversas histórias e culturas. Pensava no objeto de forma singular, dedicado a uma pessoa, como algo a ser incorporado a uma biografia expandida do sujeito. Por isso, propunha, como o fez em 1965, segundo a Interni, um design radical. Partindo da teoria sobre l’incoerenza (a inconsistência), compreendia a singularidade criativa como algo que não é determinado por uma única conexão e interdependência entre as partes. Trata-se de uma teoria que aceita as imperfeições ou supostos erros de produção, reflete o tempo e o lugar do agora e compreende a necessidade da mudança, da liberdade e da não-repetição.
Para tanto, fundaria no início da década de 1970 a Bracciodiferro, a convite de Cesare Cassina e em conjunto com Alessandro Medina, com a ideia de produzir objetos experimentais.
Desta época, surge a “[luminária] Moloch [como] um objeto ‘útil’, mais do que radical, uma reinterpretação, quadruplicada em proporções, do arquétipo da luminária de mesa L1 (1936-1937), da Luxo ASA, do [designer nurueguês] Jac Jacobsen, apreciada pela sua forma muito funcional”, aponta Anty Pansera em um texto publicado na Domus.
Acreditava que sua criação era simples e direta, facilmente compreendida, como afirmou em entrevista à Cristina Giorni na revista DentroCasa, em julho de 2017.
“Geralmente [sou facilmente compreendido], porque meus trabalhos são quase sempre simples e diretos. Por exemplo, aquela poltrona – indicando a produção da UP B&B Italia -, que já tem quase meio século, diz que as mulheres são escravas dos preconceitos e medos dos homens. É fácil de entender, sim ou não?”
Simples, mas nem sempre fácil, seu design tornou-se uma experiência global, que redesenhou e repensou as fronteiras entre arte, design e indústria.
Desafiando limites entre design, arte e indústria
Suas peças estão atualmente em mais de 30 coleções permanentes de museus importantes, como o MoMA – começando pela mostra Italy: The New Domestic Landscape em 1972; o Victoria&Albert; o Vitra Design e o Louvre. Há inúmeros livros publicados sobre sua obra, carreira, vida e pensamento, como Gaetano Pesce: The Complete Incoherence. Recebeu diversos prêmios, a exemplo do Chrysler Award for Innovation and Design de 1993; do Architektur and Wohnen Designer of the Year em 2006 e do Lawrence J. Israel Prize, concedido pelo Fashion Institute of Technology de Nova York em 2009.
Desde os anos 1980, radicou-se em Nova York e continuou a produzir móveis para grandes casas como a Cassina e a B&B Itália. Também realizava desenhos e murais, a exemplo do My Dear Mountain, em Aspen, de 2022; e projetos que traduziam uma visão utópica, como a Torre Pluralista em 1987, pensada para São Paulo (confira na galeria de imagens no início desta matéria). Sua obra incluía ainda propostas de design-arte para diversas exposições, bem como instalações e collabs com maisons e marcas de moda para os mais variados perfis, desde a Bottega Veneta até a Melissa – para esta, criou o modelo customizável Fontessa, em 2010 (confira no vídeo acima).
Foi profícuo até o fim de sua vida, mesmo enfrentando problemas de saúde. Em 2024, cerca de 30 obras coloridas – a maior parte inédita e produzida nos dois anos anteriores – foram apresentadas na mostra-testamento Nice to See You, na Biblioteca Ambrosiana de Milão, durante o FuoriSalone. Diante do edifício na Piazza San Pio XI, a escultura all’Uomo Stanco com oito metros de altura exibe um homem cansado, talvez de sua própria postura contemporânea, e que dialoga com a Maestà Sofferente (foto de abertura) instalada em frente ao Duomo, em 2019. Seu legado segue potente, singular e profundamente inspirador, com uma visão criativa que transformou para sempre o design como conhecemos.
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