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Queridinho do design: filtro de barro é invenção brasileira que conecta o funcional ao afetivo

Basta um gole para saber de onde a água vem: o frescor de um filtro de barro é inconfundível e uma forma 100% nacional de oferecer água de beber limpa e fresca. A cerâmica desde sempre fora utilizada para armazenar bebidas e alimentos, mas o design do filtro de barro não é tão antigo quanto se pode esperar. E, nos últimos anos, a peça voltou a ganhar fôlego, graças ao resgate da peça pelos millenials, seja com releituras ou com o design original – que é sinônimo de afetividade e brasilidade.

Um pouco de história

Marrom e bojudo, o filtro de barro é feito de argila moldada e cozida, fazendo parte da classificação chamada de vermelha, estrutural da produção cerâmica. Sua criação é um bem de produção tipicamente nacional, possivelmente um subproduto do ciclo industrial, que ganhou expressão maior no final do século 19 e início do 20, no Estado de São Paulo, ligado à expansão cafeeira.

Filtros São João, clássicos da indústria, são produzidos pela Stéfani – antes Lamparelli – em Jaboticabal, interior de São Paulo | Fotos: Divulgação

Antes, a água era trazida de rios e córregos, oferecida em fontes e chafarizes públicos ou extraída de poços e cisternas, apenas armazenada em talhas de argila. Ali, nas moringas, ela já ficava fresca e era purificada por decantação. A expansão das cidades, no entanto, criou a urgência de água potável com acesso mais amplo, fácil e doméstico. Afinal, o aumento da população e a precária rede de distribuição de água vinham ao encontro de doenças.

Um dos fabricantes que popularizou o filtro de barro tem origem caipira e ofereceu-lhe o nome de São João. A história começa no início dos anos 1920, quando um imigrante italiano chamado Victor assume uma das empresas cerâmicas de Jaboticabal, no interior do estado. Sua família já era ceramista na Itália e vinha de uma comuna com nome bem sugestivo: Acquaviva delle Fonti.

O Estúdio Biologique faz versões elaboradas do filtro de barro: pés de madeira e torneamento bojudo manual | Fotos: Reprodução @estudiobiologique

Experimentos

De acordo com a pesquisa de mestrado assinada pelo professor Julio Cesar Bellingieri para a Unesp (Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho) de Araraquara, o primeiro filtro comercializado pela então Cerâmica Lamparelli era chamado de reto: “uma talha de barro composta por duas partes com um ‘disco’ poroso, feito de uma mistura de barro, carvão e outros componentes, que tinha a função de filtrar a água”. Breu e cera eram utilizados para a fixação e uma torneira de chumbo, usada para extrair a água.

Esse modelo era uma derivação dos filtros que os imigrantes trouxeram nos navios. Havia outros, maiores e mais pesados, com pedras filtrantes que chegavam a pesar 50kg. Menções sobre dois modelos – um de folhas de flandres e ouro de madeira – foram apresentadas na Exposição Nacional de 1908, por Dias Martins, de Piracicaba. E, ainda, há os filtros do tipo Pasteur/ Chamberlain importados.

O filtro com aspecto de Cacto foi criado pela artesã Adriana com o grupo Vale do Jequitinhonha, de Minas Gerais | Foto: Reprodução @maos.movimento

Buscando mais eficiência, Victor passa a fazer uso de uma vela. “Um cilindro fechado com caulim, carvão e outras substâncias, parafusado com duas arruelas de borracha a uma chapa de ferro cromada, a qual, por sua vez, era pregada com cimento entre as duas partes do filtro”. Tal modelo podia ser higienizado regularmente e ganharia fama a partir de 1926.

À época, é bem possível que outras cerâmicas também produzissem filtros parecidos com o São João, mas o material acerca da produção é escasso ou não foi preservado. Como aponta um segundo artigo do professor Bellingieri, em 1910, a Companhia Cerâmica Vila Prudente, na capital, já registra a produção de filtros com velas rudimentares. Em 1922, durante a Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, Octavio Teixeira Mendes, de Piracicaba, recebeu uma medalha pela produção de filtros e velas.

A ceramista Paula Mosca criou uma versão que combina acabamentos esmaltados e foscos | Foto: Reprodução @moscaceramica

Em 1935, na capital paulista, o português Antônio Nogueira tinha uma cerâmica e, em parceria com o professor de bioquímica Roberto Hottinguer, da Escola Politécnica da USP (Universidade de São Paulo), desenvolveu um sistema de purificação doméstica com prata coloidal, mais eficiente, por esterilizar a água: o filtro Salus.

Hoje uma solução barata, o filtro de barro chegou a ser produto de luxo – e sua massificação só se daria a partir dos anos 1950, mantendo-se soberana até a década de 1980. Nos anos 1960 e 70, as empresas Pozzani S.A. (de Jundiaí), Filtros Salus e Irmãos De Stéfani (antiga Lamparelli) expandem a produção e atendem ao País de maneira massiva.

Nos anos 80, porém, os purificadores modernos e a água mineral engarrafada conquistam a hegemonia e começam a impactar na demanda. Os filtrinhos de barro perdem, pouco a pouco, o lugar cativo nas cozinhas e passam a ser progressivamente substituídos. Segundo reportagem do Globo Repórter de 2017, das 25 fábricas existentes em Jaboticabal, apenas oito estavam na ativa à época.

O Estúdio Boitatá criou um filtro minimalista – disponível em cores diversas – com acabamento esmaltado | Foto: Reprodução @estudioboitata

Água Boa

Durável, resistente, simples de usar e brasileiríssimo, o filtro de barro é peça de design e as novas gerações têm garantido vida longa a esse clássico. Melhor impossível: ele não requer energia elétrica, mantém a água fresca – cerca de cinco graus mais fria que a temperatura ambiente, pela porosidade dada pelo mix de argilas – e é, sim, extremamente eficiente na purificação da água. Duvida? Nós provamos!

Um teste do Instituto Vital Brazil, do Rio de Janeiro, obteve água pura e potável a partir de uma mistura de água de esgoto. E o livro The Drinking Water Book, de Colin Ingram, indica que os filtros de barro trazem um sistema de purificação eficiente, capaz de reter cloro, pesticidas, ferro, alumínio, chumbo e parasitas.

Paulistas de nascimento, mas com jeitinho mineiro: os filtros feitos no Vale do Jequitinhonha são artesanato raiz. À venda na loja Paiol | Foto: Divulgação

Porém, para que o filtrinho cumpra seu papel, vale observar o selo de aprovação dado pelo Inmetro. Também é necessária a manutenção de forma constante e correta: limpeza semanal com esponja macia e água, tanto nas paredes internas, quanto na vela. Nada de produtos químicos ou escovas abrasivas, para que as propriedades filtrantes sem mantenham, assim como a insipidez da água.

Por fim, é necessário que a vela seja trocada periodicamente. De acordo com recomendação da FioCruz, a cada seis meses. Ah, o filtro também não é eterno: o ideal é trocá-lo a cada cinco anos.

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